Matemática aplicada. Uma crônica sobre o tempo; esse tesouro inestimável.
Matemática aplicada
O rosto marcado denunciava a idade . Todas as linhas embaixo dos olhos, na testa ou até mesmo no corpo atestavam algo parecido com maturidade. Eu , que sempre fui jovem, não sabia o que era ser margeada, madura ou até mesmo adulta. Tudo parecia confuso na sua idade: pagava contas de siglas, ia a verdureira em dias certeiros e sabia exatamente quando choveria. Como era tão sabida, ou ao menos , tão marcada? Não poderia deixar de imaginar o passar dos anos para aquele par de olhos castanhos, que algum dia viram o brilho da juventude, e viveram como se o tempo só passasse para os outros.
Eu ainda era moça, tão jovem que nem importava se era bonita. As oportunidades e vontades eram imensas, tanto que eu nunca tive muita consciência, fazia o que queria, sem pensar muito num câncer ou artrose; nessa idade nada disto existe. Conversava com amigas sobre nossas façanhas, dizendo que já éramos maduras, porém nem tanto, senão apodreceríamos. Era feliz sendo menina, sem aquela obrigação de ser madame , podia andar de bicicleta e tomar decisões ruins sem o peso moral da alcunha.
Porém , mesmo feliz, senti-me arrebatada por aquele rosto, uma prova real do tempo, de tudo que aconteceria em segundos ou décadas. Era fácil me consolar com a ideia de que demoraria, que ainda faltava milênios para uma ruga se estabelecer em mim. Mas era difícil, visto que já tinha eventos perdidos na memória, assim como os mais vividos, além de uma dor nas costas irreversível. Pensava já em mim, marcada e sabida, usando pomada de arnica para as costas, rememorando cada joelho ralado da mocidade.
Era estranho me imaginar num futuro distante, vestindo um rosto desconhecido, seguindo hábitos e manias que nem conhecia. Parecia que me tornaria outra pessoa, uma que nem tenho ideia de quem seria. ‘Quem sou além de mim mesma?’, perguntava-me constantemente. Tudo ecoava na cabeça, principalmente a fala de um antigo professor: ‘’A reta é infinita, logo, só podemos trabalhar com fragmentos dela, já que não há como lidar com infinitos’’. Suas falas eram sempre seguidas de um ‘’Ai está!’’, como se além de matemática ele ensinasse algo muito mais importante que tudo aquilo. Desde Bhaskara parei de entender matemática, porém comecei a compreender melhor a vida.
O tempo, ou um rosto marcado, eram a consequência de viver. O pequeno segmento de reta em que vivemos é o que temos, e o atravessá-lo implica em resolver equações e fórmulas, o que evidentemente desgasta as vistas e traços, porém está intrínseco ao exercício de viver. Logo, não tinha como viver uma juventude perene, nem esperar que a morte fosse indiferente a mim; não havia como ser infinito num mundo de finitos.
Aline Lourdes Landfeldt
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